Por MARCELLO VIGGIANO – CRM/GO: 8621 – RQE Nº: 20207 / 5298 / 5982
Mestrado em Obstetrícia e Doutorado em Ciências da Saúde pela UNIFESP. Especialista em Medicina Fetal pela FEBRASGO. Membro da Comissão Nacional Especializada em Medicina Fetal FEBRASGO. Responsável pelos Serviços de Medicina Fetal do Hospital Estadual Materno-Infantil Dr. Jurandir do Nascimento e da Clínica Ecomater Diagnósticos. Coordenador do Serviço de Residência Médica de Ultrassonografia em Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Estadual Materno-Infantil Dr. Jurandir do Nascimento. Professor Adjunto do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Medicina – UFG
Tenho dedicado grande parte do meu “tempo livre científico” em 2020 ao estudo das anomalias placentárias e suas repercussões na Obstetrícia, e em especial na minha área de atuação: a Medicina Fetal. Dentro destas alterações a que talvez tenha mais despertado interesse e preocupaçãoem meu cotidiano de trabalho foio espectro da placenta acreta, também referido atualmente como Morbidade Aderente Placentária (MAP). Para que todos tenham uma noção epidemiológica desta grave, porém subdiagnosticada intercorrência, entre as 2453 gestantes que acompanhei somente nos primeiros sete meses desse fatídico ano, tive a oportunidade de diagnosticar 4 casos, o que nos confere uma incidência de 1 em 612 gestações, número este em consonância com as principais publicações recentes sobre o tema.
A MAP é um termo histopatológico genérico aplicado à adesão anormal do trofoblasto placentário à parede miometrial uterina. O espectro inclui a placenta acreta (adesão da placenta ao miométrio sem interposição da decídua), placenta increta (invasão do trofoblasto no interior do miométrio), e placenta percreta (invasão trofoblástica através da serosa miometrial e estruturas adjacentes). Agrandecomplicação clínica nessas situações ocorre quando essa placenta não se descola do útero após o nascimento do feto, o que leva a sangramento usualmente grave.
O espectro de adesão anômala placentária é uma das mais perigosas intercorrências associadas à gestação, já que pode resultar em ruptura uterina anteparto, hemorragia maciça, falência de múltiplos órgãos, coagulação intravascular disseminada, necessidade de internação em unidades de terapia intensiva, histerectomia (associada à cesariana e no período puerperal), e em até 10% dos casos o óbito materno. O prognóstico materno-fetal geralmente é melhorado com o diagnóstico pré-natal e o manejo obstétrico com equipe multidisciplinar com expertise nessa alteração.
O risco de sangramento está relacionado ao grau de invasão placentária na parede miometrial, à área de adesão anormal envolvida, e à presença ou ausência de invasão tecidual extrauterina, como por exemplo em bexiga ou paramétrios. A morbidade materna é elevada, chegando à impressionante taxa de 75% nos maiores estudos científicos; sendo que mais da metade das pacientes recebem transfusões de hemoderivados, e um terço apresenta cistostomias incidentais em associação ao manejo cirúrgico. As lesões ureterais, fístulas vesicovaginais e a ocorrência de reoperações são complicações menos frequentes.
Esse espectro é resultado da ausência da decídua basal normal, frequentemente relacionada a trauma uterino cirúrgico, o que leva o trofoblasto aderir ou invadir o miométrio cicatrizado. A incidência tem aumentado durante as últimas décadas em associação às taxas também crescentes de cesarianas. Relatos antigos de centros de referência sugerem que o acretismo ocorria em aproximadamente 1 em 2500 gestações nos anos 80, e mais recentemente, 1 em cada 500 a 800 partos.
Entre os principais fatores de risco que danificam o endométrio destacam-se as curetagens uterinas, miomectomias, ablações e embolizações de artéria uterina. Entretanto, os fatores de risco mais comuns são a placenta prévia (placenta que recobre parcial ou totalmente o orifício interno cervical) e as cesarianas anteriores. Interessante e também preocupante em nosso meio é perceber que quanto maior o número de cesarianas maior o risco de acretismo. Por exemplo, o risco após uma cesariana é de 3%, após duas aumenta para 10% e após três ou mais pode chegar a mais de 60%. Outros fatores de risco incluem história prévia de acretismo, multiparidade e idade materna avançada.
As gestantes que possuem os fatores de risco apresentados (especialmente os mais comuns) devem ser submetidas à avaliação diagnóstica antenatal por ultrassonografista habilitado e com experiência nessa condição. As ecografias obstétricas no segundo e terceiro trimestres da gestação são a sustentação da propedêutica pré-natal, com sensibilidade e especificidade perto de 90%, e as anormalidades sugestivas de acretismo são muito bem estabelecidas na literatura científica, como por exemplo a presença dos espaços lacunares intraplacentários, a hipervascularização retroplacentária, perda da “clear zone” (zona hipoecogênica retroplacentária), afilamento miometrial (miométrio < 1 mm), não visibilização da cicatriz da cesariana e interrupção da parede vesical (nos casos de percretismo anterior). Estudo recente de 2019 do grupo do Professor Kypros Nicolaides, da Fetal Medicine Foundation de Londres, estabelece uma estratégia interessante e de alta detecção da MAP ainda no primeiro trimestre da gestação por meio da observação dos mesmos achados ecográficos entre 12 e 16 semanas, com avaliações posteriores por volta da 20ª e 30ª semanas.
A ressonância nuclear magnética, realizada por radiologista especializado entre a 26ª e a 32ª semanas, é considerada método propedêutico complementar à ultrassonografia com alta sensibilidade e especificidade, que nos auxilia bastante em situações definidoras da profundidade da invasão e especialmente nos casos de placentas posteriores.
A determinação do momento adequado do parto é um dos maiores desafios nesses casos, já que precisamos equilibrar os riscos do parto pré-termo planejado contra o risco de sangramento e das cirurgias emergenciais. Uma análise dessa decisão envolvendo gestantes com acretismo e placenta prévia demonstrou que a cesariana programada entre 34 e 36 semanas foi a estratégia preferida para balancear os riscos maternos e neonatais.
O trabalho com equipe multidisciplinar e a experiência do profissional que conduz o caso proporciona redução importante nos danos colaterais. Alguns estudos demonstram que a morbidade materna é significativamente reduzida quando a gestante é atendida em centro especializado de referência em situações de alto risco.
Levando-se em consideração que entre 30-50% das placentações anormais evoluem sem o diagnóstico durante a gestação, torna-se essencial o treinamento adequado dos ultrassonografistas que acompanham os casos de alto risco em Obstetrícia, para que assim haja uma melhor condução clínica e preparo oportuno da equipe multidisciplinar envolvida.
Por fim lembrem-se, que como dizia o filósofo Immanuel Kant, “quem não sabe o que procura não identifica o que acha”. Estejamos todos mais atentos ao espectro do acretismo placentário.